Iniciativa, que nasce com mais de 180 apoiadores, traça caminho para que setor privado assuma papel protagonista no combate à desigualdade
Por Natalia Viri* 8 de julho de 2021
Enquanto correm para anunciar metas de redução de emissões de gases de efeito estufa e se declararem ‘carbono-neutras’, as empresas brasileiras ainda estão bem atrás num assunto tão ou mais sufocante e urgente para o país: a desigualdade abissal que separa brancos e negros.
Ainda que a questão racial tenha começado a entrar mais na agenda dos boards e do alto escalão das grandes companhias, mesmo aquelas mais comprometidas e que estabeleceram metas para aumentar a diversidade nos cargos de liderança vêm apontando dificuldades para cumpri-las.
Um pacto que nasce com o endosso de 180 representantes de coletivos negros, empresas, investidores e acadêmicos quer mudar essa realidade, saindo das cartas de intenções e traçando um caminho para que o setor privado realmente possa assumir um papel de protagonismo antirracista.
O objetivo é conseguir uma representação mais justa dos profissionais negros no mercado de trabalho brasileiro no espaço de uma geração.
Batizado de Pacto de Promoção da Equidade Social, o protocolo, que está sendo lançado oficialmente hoje após mais de um ano de trabalho, culmina na atribuição de um rating às companhias, com base num Índice ESG de Equidade Social — IEER.
A ideia é que as empresas façam adesão ao pacto de forma voluntária, seja para mostrar o comprometimento com a causa, seja pela pressão de investidores.
A lista de apoiadores inicial inclui nomes de peso como o CEO da Gerdau, Gustavo Werneck, da Localiza, Eugenio Mattar, do Google, Fabio Coelho, e da Suzano, Walter Schalka, além de Carlo Pereira, do Pacto Global da ONU.
Entre investidores institucionais estão Luis Stuhlberger, do Fundo Verde, Fabio Alperowitch, da Fama, Florian Bartunek, da Constellation, e representantes dos grandes bancos, como Itaú, Bradesco e BTG.
“No prazo de três a cinco anos, queremos ter 500, 600 empresas brasileiras aderindo ao pacto e fazendo investimentos em equidade racial”, aponta Jair Ribeiro, que fez carreira no mercado financeiro e há anos vem dedicando boa parte do seu tempo à questão educacional, com a ONG Parceiros da Educação, e está por trás da concepção do projeto
A presidência do conselho ficará a cargo do professor Helio Santos, ativista do movimento negro desde a década de 1970 e um dos intelectuais mais ativos no combate à desigualdade racial.
Fundador e diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Diversidade (IBD), Santos coordenou nos anos 1990 o grupo que colocou as ações afirmativas na agenda pública do governo federal e é considerado um dos pais dos regimes de cotas.
“O pacto marca um ponto de inflexão. Sempre se entendeu que as ações afirmativas seriam resolvidas apenas pelo campo público e agora temos uma política que vai movimentar o campo privado, que ao mesmo tempo valoriza a mão de obra negra e investe em educação”, diz ele.
A foto
Mais do que apenas um ‘selo’, a ideia por trás do IEER é impulsionar a mudança, incentivando a adoção de ações afirmativas e investimentos em equidade racial.
Em linhas gerais, o índice é constituído em três etapas.
A primeira traz o diagnóstico claro da situação da empresa em relação à desigualdade racial, ponderando o quanto da massa salarial interna vai para negros e o quanto vai para brancos e versus a composição da população economicamente ativa da região onde ela atua.
“Essa forma de enxergar os desequilíbrios raciais é uma ruptura no debate racial brasileiro, que é muito agregado. Você não consegue enxergar onde está o problema. A gente sabe que ele existe, mas sempre joga a bola para o outro, nunca individualiza. O que a gente está fazendo é identificar onde está o desequilíbrio”, aponta Michael França, econometrista do Insper que participou da construção do índice, ao lado de Sergio Firpo, Lucas Rodrigues e Rafael Tavares.
A fórmula para fazer o retrato da desigualdade racial das companhias já é um amplo avanço de transparência, já que hoje muitas empresas não calculam ou não divulgam esse dado — e quando o fazem usam apenas os dados agregados para toda a força de trabalho, sem ponderar as desigualdades nos cargos de liderança.
A princípio, os dados das empresas que aderirem serão retirados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), documento com informações trabalhistas que precisa ser submetido anualmente pelas empresas ao governo. Mas a recomendação do pacto é que as empresas façam seu próprio recenseamento racial, melhorando a qualidade dessas informações.
O filme
Depois de feita a fotografia, na segunda etapa, as empresas que aderirem podem se comprometer a adotar ações afirmativas, como, por exemplo, processos seletivos exclusivos ou com cotas para negros e políticas de equidade racial para seleção ou exclusão de parceiros e fornecedores — o que aumenta a nota.
Muitas empresas se queixam que, mesmo com ações afirmativas, há dificuldade em se recrutar profissionais negros qualificados, especialmente para os cargos de mais alta liderança. A terceira etapa vem para contemplar esse problema.
“Ao contrário dos Estados Unidos, onde você tem 12% de negros, e com ações afirmativas resolve boa parte da questão da equidade racial, no Brasil é diferente. Não basta fazer ações afirmativas, temos uma maioria de população negra e um problema de base de educação pública e é preciso investir efetivamente em equidade racial, fora dos muros da empresa”, diz Ribeiro.
As companhias podem melhorar seu rating ao fazer investimentos em projetos de educação pública ou privada ou em organizações e empresas lideradas por negros que trabalhem com inclusão e qualificação para o mercado de trabalho.
O protocolo estabelece um valor indicativo do quanto cada companhia deveria aportar para fechar seu próprio gap racial, com base em dados do quanto custa formar alunos nos ensinos fundamental, médio e superior. O acréscimo no rating é tanto maior quanto mais próximo o investimento ficar do valor indicativo, que tem como teto R$ 30 milhões por ano.
A construção das ações afirmativas e dos investimentos que podem ser qualificados como de equidade racial foi feita em conjunto com diversos coletivos negros e validada pelo Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).
Na prática
Na prática, o pacto estabeleceu a fórmula do bolo. Caberá a empresas certificadoras verificar se a execução da receita está se dando de forma correta pelas empresas, validando o rating e a adoção da metodologia.
Já manifestaram interesse em se tornar certificadoras empresas de auditoria (representantes das Big 4 já endossaram o pacto) e companhias que atuam em outros tipos de certificação ESG.
Todas essas certificadoras serão treinadas por empresas homologadoras a serem validadas pelo Pacto — que necessariamente têm de ser entidades ligadas ao movimento negro e lideradas por gestores negros.
Por ora, o pacto está em fase final de constituição, como uma associação sem fins lucrativos e deve eleger sua estrutura de governança, com conselho deliberativo (a ser formado por pelo menos 50% de mulheres e 50% de negros) e diretoria executiva.
Gilberto Costa, executivo negro com uma carreira de quase 9 anos no JP Morgan, é quem vai comandar a execução.
Se, para o investidor e o consumidor, a iniciativa traz a simplicidade do índice, por outro há uma certa complexidade para a adoção pelas empresas — e a efetiva adesão por parte delas deve depender do quanto a metodologia vai sobreviver ao teste da vida prática.
Apesar de ter sido construída em exercícios exaustivos e testada em mais de 300 casos de empresas reais, há espaço para ajustes ao longo do processo, aponta Jair Ribeiro.
“Contemplamos, sim, fazermos ajustes ao programa ao longo do tempo para aperfeiçoá-lo, ajustes esses que poderão ser deliberados pelo conselho ou pela assembleia, dependendo da sua relevância”, diz.
ESG à brasileira
Com uma agenda praticamente importada dos países desenvolvidos, o protocolo tropicaliza o ESG brasileiro.
“A defesa climática e de equidade de gênero é uma pauta comum a todo mundo, mas a gente não tem endereçado no Brasil problemas brasileiros, como a equidade racial e a desigualdade social. Isso não vai vir de fora”, aponta Fabio Alperowitch, sócio-fundador da Fama Investimentos, que participou do grupo de construção do pacto.
O professor Hélio Santos faz coro:
“A sustentabilidade tradicional funciona para a Holanda, para a Dinamarca, mas não para o Brasil, que é um país de maioria negra e um dos mais desiguais — dois fatores que estão intimamente ligados e não são mera coincidência. Com o tamanho de nossas desigualdades, precisamos de uma sustentabilidade moral e essa tese de ESG racial é o principal vetor.”
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